Edição #03
Ontem, no mundo perdido do LinkedIn, uma narrativa encantadora de uma “possível primeira astronauta brasileira", que muitos compartilharam como inspiração, entrou em colapso antes mesmo dos algoritmos distribuírem o conteúdo. A garota, de 22 anos, mirou na lua com um currículo impressionante e acabou se perdendo no espaço.
Se, assim como eu, você não fazia ideia do que estava acontecendo, tem link para a matéria no rodapé.
Mas este texto não é sobre ela. É sobre nós.
Vivemos imersos em um ideal de grandiosidade constante. Onde o sucesso precisa ser narrado em tempo real, de preferência com legendas motivacionais e música de fundo. O emprego dos sonhos precisa ser conquistado antes dos 30. Os milhares de cursos que o “mercado” exige, melhor se forem internacionais. É preciso falar inglês fluente, mesmo quando nossos vizinhos falam espanhol. A sociedade parece ter se organizado para exigir que pessoas reais vivam vidas impossíveis.
A performance da própria vida virou trabalho.
Judith Butler¹ dizia que toda identidade é, no fundo, uma repetição de atos. Nas redes, isso se intensifica: repetimos nossos melhores ângulos, nossas frases mais inspiradoras, nossos feitos mais excepcionais, até começarmos a crer que somos mesmo aquilo que mostramos. Tudo em prol da grandiosidade “necessária”. É fácil se perder aí. Mais do que mentiras intencionais, muitas vezes são exageros aceitos, distorções que fazem parte do jogo - como aquela mentirinha no currículo, ou nos stories.
É aí que entra a segunda camada dessa história: vivemos obcecados por atenção.
Em um ecossistema onde o que vale é o número de visualizações e curtidas, o algoritmo premia o sensacionalismo, mesmo que seja fake news. Quanto mais incrível for sua narrativa, mais perto você chega de ser validado. E às vezes, a história é tão boa que, mesmo com todos os sinais, engana até os olhos mais atentos.
Mas e do outro lado da tela?
A cada história de sucesso estonteante, há milhares de olhares silenciosos. Pessoas que não talvez não performam, mas consomem. Que, diante dessas vidas com filtros, se sentem menores, atrasadas e insuficientes.
A lógica do “rolar a tela” é também a lógica da comparação infinita. Já que a grama do vizinho agora não é só mais verde - ela tem filtro, legenda, link para um TED Talk e está na Forbes under 30.
Por que a vida simples ficou tão complexa?
Me recuso a acreditar que precisamos ir à lua para sermos dignos de admiração. Talvez, viver uma vida honesta, silenciosa e consistente seja a forma mais radical de resistência.
A polêmica mencionada: “Laysa Peixoto será 1ª astronauta brasileira? Entenda a polêmica” – CNN Brasil
¹ BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge, 1990.